Pular para o conteúdo principal

Leonardo Gonçalves lança novas faixas do projeto "Para Levi", dedicado ao filho

Abominável mundo novo

A cena me deixou terrificado. Há poucos dias, visitei uma escola paulistana de ensino fundamental, em um bairro de classe média da cidade. Cheguei à hora do intervalo e deparei-me com um quadro que parecia retirado de algum episódio de “Black Mirror”, a série televisiva que explora os aspectos mais sinistros do impacto da tecnologia sobre o mundo contemporâneo.
Espalhados pelo pátio, recostados nas paredes, sentados ao chão, divididos em grupos, praticamente todos os alunos mantinham os olhos presos às telinhas dos respectivos celulares. Eram dezenas de crianças e pré-adolescentes. De ombros arqueados, quase nenhum olhava diretamente para o outro. Boa parte deles utilizava fones de ouvidos.
Muitos movimentavam os polegares freneticamente, digitando algo nos minúsculos eclados virtuais, enquanto caminhavam às cegas, sem olhar para a frente. Outros, imóveis, nucas curvadas, retinas fixas nos aparelhinhos, mantinham o semblante vazio, uma expressão de ausência e torpor.
Estavam fisicamente juntos, mas separados por uma barreira invisível. Naquelas mentes e corpos em formação, a criatividade, a energia e o fulgor tão típicos à idade pareciam tragados pela entropia de um assustador buraco negro. A imagem me provocou tamanho abalo que, nos dias posteriores, arrisquei-me a investigar um pouco mais o fenômeno.
Tina uma hipótese inicial, compartilhada, creio, por muitos. Apostei que iria encontrar apenas um cenário de hiperexposição das vaidades, uma hipertrofia dos egos, a especularização da banalidade cotidiana.
Vasculhei a internet, busquei bibliografia especializada, analisei grupos de WhatsApp, percorri redes sociais, segui usuários, acompanhei hasthtags, baixei aplicativos. Contudo, minha hipótese inicial mostrou-se insuficiente. O panorama, até onde pude avaliar, aparenta ser muito mais aterrador.
Por minha condição de pai, conheço muitos pré-adolescentes e já havia constatado que a maioria deles se recusa a qualquer espécie de imersão interior ou mesmo ao exercício da contemplação do mundo. Numa viagem de automóvel, por exemplo, preferem distrair-se com tabletes e celulares ao olhar pela janela, a mergulhar nos próprios pensamentos ou a simplesmente apreciar a paisagem.
Parecem ter uma dificuldade de lidar com as pausas e silêncios necessários à autorreflexão e à construção da própria subjetividade. Some-se a isso o comportamento multitarefa, a exercitação por reagir de imediato a estímulos das mais variadas procedências, o instantaneísmo incitado pelas redes, e tudo parece convergir para uma certa vulnerabilidade e, talvez, alguma espécie de vácuo emocional.
O fato é que constatei a proliferação, em escala alucinada e preocupante, do número de adolescentes que compartilham entre si mensagens suicidas e sugestões de automutilação. Perfis no instagram exibem imagens de jovens carregadas de morbidez. Em grupos de Whatszapp destinados a fãs de animes e literatura fantástica, amigos virtuais que se autointitulam “tios malvados”  convidam os incautos a conversar por mensagens privadas.
O cyberbullying é praticado abertamente, contando inclusive com a ajuda de aplicativos como Sarahah (“franqueza”, em árabe), um dos mais populares entre os jovens, destinado a enviar mensagens anônimas para qualquer pessoa, criticando aspectos de sua personalidade ou aparência. No linchamento cibernético do Sarahah, não há ferramentas disponíveis para o atingido se contrapor ao agressor.
 Outro aplicativo onipresente nos Smartphones dos adolescentes é o coreano SimiSimi, criado em 2002, mas que nos últimos meses voltou com tudo à moda. Trata-se de um chatterbot, ou seja, um programa baseado em inteligência artificial capaz de manter uma conversação em tempo real com o usuário. Nesse caso, por trás do personagem amarelinho e sorridente, o tal SimiSimi, esconde-se um interlocutor agressivo e boca suja.
Baixei-o em meu smartphone para entender como funciona. Em menos de 15 minutos de interação, eu já estava sendo xingado com palavrões cabeludos e recebendo, da parte dele, propostas sexualmente explícitas. “Vou chupar você” e “Me bate, seu otário, me encha de prazer” foram algumas das frases mais publicáveis ditas pelo bonequinho.
Enquanto isso, existe gente por aí querendo censurar exposições de arte. O verdadeiro perigo parece estar nas mãos de nossas crianças e adolescentes, livremente, acessíveis a um clique. Abominável mundo novo.


Escrito por Lira Neto, no dia 15 de outubro, no Jornal a Folha de S. Paulo

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Propósito de vida!

Fernanda Valente Você já parou para pensar qual é o seu projeto de vida? Quando falamos em projeto de vida incluímos vários itens em nossa lista: trabalho, estudos, família, viagens, amizades, vida social, etc. O mais triste é viver todos os itens sem paixão. O que te move? O que faz o seu coração acelerar? Você se sente entusiasmado com o que possui? São questões assim que definem o nosso propósito ou missão. Já tive uma fase da minha vida em que perdi a paixão, foi o momento mais triste que vivi, pois ele foi movido por falta de perdão, deixei a frustração me conter e isso, aos poucos, foi matando as minhas paixões, meus valores internos, a criatividade, a inspiração... passei a não abrir a porta do meu coração para as pessoas, inclusive companheiro. Comecei a implorar a Deus pela liberação de perdão, para eu seguir. Não foi fácil. O ressentimento mata o insensato, e a inveja destrói o tolo (Jó 5.2) O ressentimento é o grande assassino da paixão. Se quiser voltar a te

Decoração com fotos

Fernanda Santiago Valente Eu amo fotografias. Uma vez decorei a parede do meu quarto com fotos recortadas de jornais. Eram fotos de peças de teatro. Eu ainda era solteira. Sei que ficou linda. Colei com cola básica e passei verniz. Estou pensando em fazer algo parecido na sala de casa, em apenas uma parede. Algumas ideias que me veio: 1. Para o quarto: Várias molduras com fotos do casal 2. Para a sala: Posters de filmes antigos ou fotos de paisagens 3. Para a cozinha: Fotos retrô, de rótulos antigos 4. Para o banheiro: quadros com frases Abaixo segue algumas ideias que encontrei pela Internet e gostei muito:

Sobre literatura vampiresca

Os Vampiros se Alimentam de Sangue e Tinta , segundo episódio da série  Super Libris , com direção geral do escritor, cineasta e jornalista José Roberto Torero, entrevista o escritor  André Vianco , que mescla terror, suspense, romance e fantasia em suas obras. Tendo o vampiro como tema recorrente em suas histórias, Vianco fala sobre a literatura vampiresca no dia  5/10, segunda, às 21h, no SescTV . Com o objetivo de mergulhar no mundo da literatura, a série Super Libris, formada por 52 episódios de 26 minutos cada, entrevista 52 escritores e apresenta curiosidades presentes no processo de criação de livros. Cada programa é formado por pequenos quadros com diversos assuntos relativos ao universo literário, e traz narração do ator José Rubens Xaxá. Entre os escritores entrevistados estão Ruy Castro, Luis Fernando Verissimo, Ruth Rocha, Ignácio de Loyola Brandão, Ferréz, Antonio Prata, Thalita Rebouças e Xico Sá. Neste episódio, Vianco comenta que a literatura vampiresca integra